A
nega seguia um trajeto, só que ninguém sabia de onde ela vinha, era um caminho
de tarde, de ponteiro certo. Até já teve quem seguiu a nega, mas seguiu e não
contou nada pra ninguém, talvez quisesse o sujeito guardar a nega só pra ele.
A
verdade é que a danada sabia, atraía uma categoria que só, era dobrar a esquina
pra arrancar todo mundo do costume. Era uma passada tão rápida, mas tão
esperada ao longo do dia, fazia era muito, fazia alegria, e que dirá poesia nos
dias mais embalados. Soltava uma olhada pro lado, para um gajo se enfeitiçar.
Era só uma vez também, parecia que ela sabia quem era quem. Não repetia o gesto
por nada, nem que fosse parada, desviava arrumando os cabelos, daquele jeito
distraído, não era com ela nenhuma investida. E se o sujeito fosse mesmo
atrevido, a nega fazia castigo e ficava até dois dias sem passar.
Cada
um dava um nome pra ela, construíam versos secretos, ora Jurema, ora Flora, a
quem jurasse que era Gabriela, só por causa daquela, cravo e canela, mas a
graça mesmo se desconhecia.
A
nega tinha além do molejo, um beiço grosso, regado a vinho escuro. Tinha um
olho puxado ligeiro e um nariz exibido que apontava para o céu. Estava sempre
de roupa ajustada, denotando os desenhos. Expunha só o que aguçasse, causando
apetite, e até uma investigação fantasiosa. Não era alta, mas usava sapatos
altivos. Ficava ainda mais distante dos que a miravam sem disfarce.
Enquanto a nega passava, ela era quem quisesse. Espreitava de longe seus admiradores, respirava firme e marchava. Depois se seguiam suspiros, burburinho comprido, cuidados mudos que a perseguiam por toda a carreira, até onde se pudesse alcançar.
Assim
como seus admiradores a nega aguardava àquela hora do dia, quando largava a
labuta, e a caminho de casa ia colher a estima que a ela, somente a ela
competia. Ficava mais forte, mais linda ainda, pensava, separando o mundo de
si. Uma coisa era ela, outra era o
resto, o resto todo. Mal passava e já sonhava com o dia seguinte. Se aprumava no
juízo. Chegava em casa e abria as gavetas, escolhia a dedo os adornos de
amanhã, deixava tudo acertado, para si e
para seu público, próximo e distante, separados apenas por uma indiferença
fingida, por um molejo distraído, por um esconderijo inventado. Ia dormir
pensando no estrago que faria na razão dos sujeitos.
Assim
é a Gilda, é essa a alcunha da nega. Doméstica prendada, mulher de dois mundos,
um dividido com seus devotos e o outro só seu, chaveado no peito.
O
único medo que assombrava a nega era que seu disfarce de musa viesse à tona um
dia, pela traição de alguém. Ai, se alguém descobrisse que a nega era tal como
as outras, habitando o mesmo mundo, mais uma dentre tantas, com nome, endereço
e destino.
A
nega despertava ciúme, tinha muita mulher de butuca, orando pra nega tombar,
faziam uma reza estendida, acendiam vela e trocavam simpatias, tudo pra nega um
dia sumir e deixar de passar. Torciam até pra nega encontrar um sujeito que
botasse defeito no jeito da nega desfilar. Ai se existisse um valente que
prendesse a nega em casa, mas de quem ela não largasse por outro nenhum no
altar.
Já
fazia tanto tempo que a nega passava. Como podia nunca ter cruzado sem se
deixar notar? Era certo, lá vinha ela e logo atrás vinham todos. Um ato, um
costume, um lazer, uma viagem misteriosa sem sair do lugar. Logo, logo daria seis horas, e todos rumariam
para suas casas para encontrar a realidade. Cada qual tinha a sua, e todos
sonhavam juntos, os sujeitos, as esquinas, as mulheres despeitadas, todos
ligados pela mesma fantasia. Todos querendo manejar o destino de Gilda, que
sonhava também. A nega sonhava em ser
sempre ela, sempre bela, sempre a rota escolhida do desejo de alguém.
A nega de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Olá Juana, suas histórias são uma delícia de se ler. Gostei de seu estilo de escrita, criativa, de bom gosto, muito bem narrada - parabéns.
ResponderExcluirSucesso neste seu espaço, que é um encanto.
Rosa Mattos
http://contosdarosa.blogspot.com
Obrigada Rosa! Começando, um tanto tímida, nesse mundo dos blogs! Uma chance de mostrar um pouco do meu trabalho e conhecer outros escritores como você! Um abraço!
ExcluirOi, Juana ! Adorei sua visitinha ao canto-do-conto e convido-a a conhecer nossos de mais espaços e parceiros. Temos também uma página no Facebook "Tecendo Histórias Cursos "
ResponderExcluirAdorei este seu cantinho e as histórias. Parabéns !Bjs Betty Mello