quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A Nega

 Lá ia a nega, ia toda se balançando. Pra lá e pra cá, a nega se sentia. Sabia bem o corpo que Deus lhe dera. Passava pela rua como se fosse feita só pra ela, uma passarela pra nega desfilar. Vez e outra a nega jogava os cabelos pra trás, fazia um molejo torto que só ela sabia, aí sim, o longo cabelo caracol ganhava vida, parecia querer fugir da cabeça da nega. A nega então segurava suas madeixas, domava cada espiralado escravo e segurava com graça, fingia que nem se mexeu. Olhava para o lado de modo que nem ali estivesse, se balançava toda como se fosse bem natural. E era. Quem via a nega já conhecia, ela é assim, tal qual queira.
A nega seguia um trajeto, só que ninguém sabia de onde ela vinha, era um caminho de tarde, de ponteiro certo. Até já teve quem seguiu a nega, mas seguiu e não contou nada pra ninguém, talvez quisesse o sujeito guardar a nega só pra ele.
A verdade é que a danada sabia, atraía uma categoria que só, era dobrar a esquina pra arrancar todo mundo do costume. Era uma passada tão rápida, mas tão esperada ao longo do dia, fazia era muito, fazia alegria, e que dirá poesia nos dias mais embalados. Soltava uma olhada pro lado, para um gajo se enfeitiçar. Era só uma vez também, parecia que ela sabia quem era quem. Não repetia o gesto por nada, nem que fosse parada, desviava arrumando os cabelos, daquele jeito distraído, não era com ela nenhuma investida. E se o sujeito fosse mesmo atrevido, a nega fazia castigo e ficava até dois dias sem passar.
Cada um dava um nome pra ela, construíam versos secretos, ora Jurema, ora Flora, a quem jurasse que era Gabriela, só por causa daquela, cravo e canela, mas a graça mesmo se desconhecia.

A nega tinha além do molejo, um beiço grosso, regado a vinho escuro. Tinha um olho puxado ligeiro e um nariz exibido que apontava para o céu. Estava sempre de roupa ajustada, denotando os desenhos. Expunha só o que aguçasse, causando apetite, e até uma investigação fantasiosa. Não era alta, mas usava sapatos altivos. Ficava ainda mais distante dos que a miravam sem disfarce.

Enquanto a nega passava, ela era quem quisesse. Espreitava de longe seus admiradores, respirava firme e marchava. Depois se seguiam suspiros, burburinho comprido, cuidados mudos que a perseguiam por toda a carreira, até onde se pudesse alcançar.
Assim como seus admiradores a nega aguardava àquela hora do dia, quando largava a labuta, e a caminho de casa ia colher a estima que a ela, somente a ela competia. Ficava mais forte, mais linda ainda, pensava, separando o mundo de si.  Uma coisa era ela, outra era o resto, o resto todo. Mal passava e já sonhava com o dia seguinte. Se aprumava no juízo. Chegava em casa e abria as gavetas, escolhia a dedo os adornos de amanhã,  deixava tudo acertado, para si e para seu público, próximo e distante, separados apenas por uma indiferença fingida, por um molejo distraído, por um esconderijo inventado. Ia dormir pensando no estrago que faria na razão dos sujeitos.
Assim é a Gilda, é essa a alcunha da nega. Doméstica prendada, mulher de dois mundos, um dividido com seus devotos e o outro só seu, chaveado no peito. 
O único medo que assombrava a nega era que seu disfarce de musa viesse à tona um dia, pela traição de alguém. Ai, se alguém descobrisse que a nega era tal como as outras, habitando o mesmo mundo, mais uma dentre tantas, com nome, endereço e destino.
A nega despertava ciúme, tinha muita mulher de butuca, orando pra nega tombar, faziam uma reza estendida, acendiam vela e trocavam simpatias, tudo pra nega um dia sumir e deixar de passar. Torciam até pra nega encontrar um sujeito que botasse defeito no jeito da nega desfilar. Ai se existisse um valente que prendesse a nega em casa, mas de quem ela não largasse por outro nenhum no altar.
Já fazia tanto tempo que a nega passava. Como podia nunca ter cruzado sem se deixar notar? Era certo, lá vinha ela e logo atrás vinham todos. Um ato, um costume, um lazer, uma viagem misteriosa sem sair do lugar.  Logo, logo daria seis horas, e todos rumariam para suas casas para encontrar a realidade. Cada qual tinha a sua, e todos sonhavam juntos, os sujeitos, as esquinas, as mulheres despeitadas, todos ligados pela mesma fantasia. Todos querendo manejar o destino de Gilda, que sonhava também.  A nega sonhava em ser sempre ela, sempre bela, sempre a rota escolhida do desejo de alguém.

              
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3 comentários:

  1. Olá Juana, suas histórias são uma delícia de se ler. Gostei de seu estilo de escrita, criativa, de bom gosto, muito bem narrada - parabéns.

    Sucesso neste seu espaço, que é um encanto.

    Rosa Mattos
    http://contosdarosa.blogspot.com

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    1. Obrigada Rosa! Começando, um tanto tímida, nesse mundo dos blogs! Uma chance de mostrar um pouco do meu trabalho e conhecer outros escritores como você! Um abraço!

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  2. Oi, Juana ! Adorei sua visitinha ao canto-do-conto e convido-a a conhecer nossos de mais espaços e parceiros. Temos também uma página no Facebook "Tecendo Histórias Cursos "
    Adorei este seu cantinho e as histórias. Parabéns !Bjs Betty Mello

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