domingo, 4 de janeiro de 2015

Anetta


Eram cada vez mais freqüentes as fugas de Anetta.  Precipitavam-se sempre, ora sem motivo, ora quando o inesperado a visitava. Era mais rápido do que ela mesma.

A lembrança mais antiga de suas fugas foi há mais de quinze anos. Anetta, então com dez invernos, se vira cercada de meninas da mesma idade no pátio da escola. Eram dois grupos, e entre eles Anetta e um bueiro. O motivo da perseguição se perdera em meio a tantas outras que a menina sofrera. Quando deu por si, estava no buraco escuro. Não, não fora jogada ali nem por um grupo, nem por outro. Fugiu. Parada no meio da escada que findava em água suja, ainda podia ouvir os gritos frenéticos das garotas mais agitadas e os passos apressados da inspetora. Só saíra de dentro do bueiro pelos braços da mãe.

Depois desse dia, fugir ficou fácil. A menina já entrava nos lugares marcando portas, janelas e outras saídas estratégicas que permitissem sua fuga. Nada poderia detê-la.

“Anetta já nasceu fugindo”, disse a mãe para uma conhecida. – “Escorregou para fora de mim, antes que eu me desse conta. Puxou ao pai!” Desabafou ao fim. O pai fugiu de casa quando criança e depois fugiu da esposa grávida. Não se sabia mais nada sobre ele.

Anetta fugia de tudo e de todos. Gostava da emoção de se ausentar depressa de lugares comuns, antes que pudessem perceber sua ausência súbita. Tinha loucura ao observar de longe os rostos abismados com seu sumiço. Certa vez ouviu uma amiga gritar muito assustada, certa de que Anetta tinha sido raptada, tamanha rapidez com que desapareceu. Divertia-se
.
Era tão acostumada a sumir a garota, que certas pessoas duvidavam se ela existia mesmo. O Seu Joaquim da banca de jornal era um desses descrentes. A menina aparecia semanalmente, folheava revistas e perguntava sobre o resultado do jogo do bicho. Seu Joaquim molhava a boca para responder e quando dava por si, falava sozinho.

Na padaria era a mesma coisa, a menina pedia pães e brioches e quando a atendente se virava, estava só, nem sinal da jovenzinha espevitada.

Com o tempo a mãe de Anetta até tentou interferir. Aguardava a filha em casa, mas Anetta sempre fugia da conversa.

“Trabalharei para a CIA”, pensava a menina. Imaginava ser um dia uma espiã de elite, dessas que concluem suas missões sem ser notadas.

Mas Anetta foi crescendo. Fugir ficou cada vez mais complicado. Já não passava em espaços pequenos como grades e bueiros. Já se atrapalhava com escadas estreitas e portas semi- abertas. Vez ou outra tropeçava evidenciando sua fuga. Anetta era pega vez e outra.

Por volta dos 20 anos o sonho de ser espiã deu lugar à necessidade de trabalhar. A mãe da jovem morreu. Anetta ficou só. Não podia mais fugir, caso contrário perderia o emprego. Não podia se esconder, as pessoas sempre estavam por perto precisando de sua presença. Nenhuma saída estratégica, por melhor que pudesse parecer, poderia ser usada.

Anetta ficou triste. Percebeu que crescer implicava em ser alguém, em existir de verdade, sem meias aparições, sem brincadeiras de menina invisível.

Mas um dia, um belo dia de sol, quando Anetta caminhava cabisbaixa para o seu trabalho de gente grande, o Circo Majestoso chegou à cidade.

Anetta correu para comprar ingresso e sentar na primeira fila. A moça ficou encantada com cada número apresentado. O palhaço e sua graça despretensiosa fizeram Anetta chorar de rir. E o atirador de facas? Como poderia alguém ter a mira tão certeira? Os olhos mal podiam enxergar cada golpe. Depois vieram os acrobatas dando um nó na idéia de todos, tamanho a rapidez de seus saltos e giros no ar sem fim! 

Quando Anetta achava que o espetáculo estava acabando, as luzes piscaram e uma música altíssima anunciou o próximo número. Um homem elegante saia em meio a uma nuvem de fumaça. Vestido de preto e com uma grande cartola na cabeça ele caminhou em direção a moça e disse: - “você”. Anetta se levantou sem saber como e, quando deu por si estava em cena, dentro de uma caixa grande e iluminada. O número do desaparecimento era o mais aguardado da noite. Mulheres, homens e crianças batiam palmas e os pés no chão. Anetta olhava para o mágico como que hipnotizada. Pensou a garota: “Essa é a minha grande chance”! Anetta respirou fundo, contemplou a platéia em meio a penumbra, fechou os olhos e deu um largo sorriso.

A caixa se fechou! As luzes se apagaram! A música parou! Anetta sumiu!


Licença Creative Commons
Anetta de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.


Nenhum comentário:

Postar um comentário