segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Pode ou Não Pode?



Pode ou não pode?

Eu estou aqui brincando na sala e minha mãe ta lá fora colocando as roupas pra secar.
Só parece que fico sozinho, mas sei que de lá do quintal os olhos da minha mãe me alcançam aqui dentro e sei também que só pelo barulho ela sabe se eu estou fazendo uma coisa que pode, ou que não pode. Mãe deve saber de tudo.

A minha mãe falou que existe coisa que pode e coisa que não pode. Eu achei meio esquisito, porque pra mim só existia o tal do “não pode”, eu ouvia mais. Só que outro dia ela me explicou que tem também o “pode” e, que quando eu aprender direitinho eu nem preciso ficar perguntando o tempo todo.

 Tem sim coisa que pode. Ela me falou que pode brincar no tapete, mas que se eu for brincar com água no tapete aí é uma coisa que não pode, senão dá um trabalhão danado pra ela secar tudo.
Assistir televisão no sofá também é uma coisa que pode, mas só pode se for sentado, porque se for de pé, eu fico muito alto e o tombo é maior se eu cair.

Tem hora que eu quero muito fazer uma coisa que não pode, mas aí eu não faço, porque não pode né?!

Não pode entrar na cozinha quando a mamãe ta cozinhando, mas para comer pode. Pode também pegar um biscoito no armário de baixo, mas não pode comer o biscoito se for antes da hora de comer a comida. Estranho né?! Também achei, mas aí ela me falou que se eu comer o biscoito, depois eu fico sem fome e a comida não cabe na minha barriga, entendeu?

Levar os brinquedos pra sala é uma coisa que não pode de manhã cedinho quando ela está varrendo a casa, mas se eu quiser depois disso eu posso, mas só posso mesmo se eu for guardar tudinho depois.

Já o meu pai tem um jeito diferente da minha mãe, às vezes ele fala que pode se minha mãe falar também. Eu não entendo direito nessa hora, porque se ele falou uma coisa e minha mãe outra, então o que está valendo? Aí eu pergunto para os dois juntos e eles ficam conversando na minha frente pra ver quem está certo. Eu fico esperando sabe?  Mas se demorar muito eu logo pergunto uma coisa mais fácil pra acabar com a confusão.

Meu pai falou que quando eu crescer, eu vou entender direito essa coisa de pode e não pode e que vai ficar um pouco mais difícil,  porque eu vou ter que resolver sozinho o que pode e o que não pode ser feito.

Mas eu já vi que os adultos também têm que perguntar. Minha mãe outro dia perguntou para a mãe dela se podia colocar mais farinha no bolo. O meu pai também pergunta lá no trabalho dele se pode chegar atrasado. Será que a minha professora que sabe tanto de todas as coisas também tem que perguntar se pode ou não pode ensinar as coisas pra gente? E o médico será que têm que perguntar pra alguém se pode dar remédio pro doente? Será que até o presidente pergunta pra alguém se pode ou não pode alguma coisa?


Nossa, acho que afinal, quando a gente não sabe a resposta é bom perguntar mesmo, até aprender. Será que demora muito pra aprender tudo o que pode e o que não pode fazer? 

Vou perguntar pro meu pai tá?! Você pode perguntar para o seu pai também? Assim, a gente fica sabido logo e vai correndo fazer tudo o que se pode fazer nessa vida!




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quinta-feira, 12 de março de 2015

Romana


Era uma cidade suja e feia, pensava Romana olhando pela janela. Como fora parar ali? Se perguntava em pensamento, sentia-se indisposta até para pensar alto. Deve ter sido idéia do Augusto, o traste com quem fora casada. Só essa imagem vinha à cabeça de Romana quando pensava no finado marido. Um traste, uma maçaroca de roupas emboladas em um corpo gordo e pesado. Nunca teve classe, nem para entrar e nem para sair, chamava sempre a atenção de todos como uma banda que passava desordenada e desafinada.

Quando pensava no corpo gordo de Augusto sobre ela na noite de núpcias, sua primeira vez, tão magra e pura, sentia tristeza, mas ainda assim acendia um cigarro para esquecer.

Abria um pouco mais a janela para tentar se distrair com a gentalha que cruzava a avenida. Via Rose e o marido, um sujeito magro e alto, sabe-se lá o nome do tal.  Vinha fazendo malabarismo com as quatro crianças penduradas e mais as sacolas do mercado. Ainda enxergava bem, pensava. Podia ler o nome do estabelecimento na sacola e podia também notar que uma das crianças do vizinho era triste, não ria e nem se mexia como as outras. Lembrou-se de Vera, a filha do meio.

Vera, que nome estranho, nunca gostara. Foi escolha do Augusto, aposto. Homens têm uma mania de escolher nomes que não caem bem. Preferia que se chamasse Alva. Acreditava que a menina era triste por causa do nome que carregava. Rolava no chão aquele homem corpulento, fazia de tudo para agradar a filha. A menina se assustava de ver Augusto tão grande e barrigudo se atirar ao chão. Quando percebia que o pai estava bem e só fazia graça, abaixava a cabeça e dava um sorriso tímido com os olhos fixados em seu rosto suado e sorridente. Era como um cão, pensava Romana, um cão, sem raça e nem pedigree, um cão babão como aqueles que carregam barris na neve à procura de quem salvar.

Não sabia por que pensava em Augusto, devia era estar muito debilitada mesmo para ter pensamentos tão nebulosos. Já era quase hora da filha chegar. O cheiro do cigarro precisava sumir antes que a porta abrisse e por ela entrassem Dora e o pequeno Benjamin. Fazia três anos que vivia com a filha mais velha e o neto naquele apartamento de frente para a avenida das torres. Não tivera escolha, Augusto só deixou a aposentadoria, dívidas e os três filhos. 

Abanava o ar para dissipar o odor e a fumaça enquanto pensava. Semana que vem seria aniversário do finado. Faria Augusto 83 anos. Partiu jovem aos oitenta, coitado. Até que viveu bem pelo peso que tinha. Em dia de aniversário ele queria festa, fosse o dia dele, o dela, o dos filhos. Comprava um bolo grande para sobrar bastante. Acabava de comer o bolo madrugada adentro depois que a festa tinha fim e todos estavam dormindo. Comprava sempre um presente caro com um dinheiro que não tinha.
Escorreu uma lágrima de Romana. Devia ser a poeira daquela cidade imunda, constatava logo.

Quando foi chamada no hospital para receber a notícia parou de sentir as pernas. Disse aos filhos que não podia ir naquele dia, mas que no dia seguinte veria o marido. De rabo de olho percebia os filhos se entreolharem e a tristeza que assombrava cada um. Quem falaria? Quem seria o primeiro a dizer que a última visita teria que ser feita naquele mesmo dia? Quem arrancaria a mãe que olhava pela janela e fingia não perceber que chegava a hora da despedida? As pernas? Estavam boas, podia andar por horas até que cansassem, não tinha dores nas costas e nem na bacia. Doía sim uma parte de Romana que nunca fora tocada até então.

Naquele momento, cercada pelos filhos lembrou-se do cartão do último aniversário escrito pelo marido: “Mesmo que a noite pareça sem fim, você faz um sol dentro de mim”.

Gustavo foi o primeiro que disse. As palavras saíram da boca do filho mais novo como água escorrendo, tortuosa, ininterrupta, molhando tudo conforme avançava. Começou a se sentir mergulhada, afogada, não podia respirar, não podia se salvar. Augusto morreu.

Apagou-se o sol, fugiu o cão, saiu o peso de cima de seu corpo magro. Um dia o marido prometera que jamais a deixaria, era então Romana jovem e cheia de insegurança. Ele a apertou entre o peito gordo e a envolveu. Sentiu-se segura e firme.

Começou a maldizê-lo após sua morte. Passava horas na janela vigiando a vizinhança. Voltou a fumar escondida. Procurava em cada lembrança um jeito para desqualificar o marido e empurrar suas memórias para longe. Desejou até mesmo esquecer. Tantas velhas feito ela se esqueciam das coisas, viviam perdidas em mundos sem lembranças, sem temer a morte, sem sentir saudade, sem falar de amor.

Escutou a porta da cozinha se abrir. Era Dora, a filha de bom nome que trazia com ela Benjamin, um menino gordo com o sorriso do avô, que mal entrava em casa e corria para abraçar Romana, suado. Ela colocava o menino no colo e mostrava para ele a rua, a avenida, à cidade feia e suja. Antes de o garoto dormir, Romana contava as histórias do avô, retratando-o como um homem forte, sensível e engraçado, que rolava no chão só para fazer os filhos sorrirem.

A filha vigiava a mãe, temerosa sobre sua saúde. Rezava pelo pai e pedia ajuda, sentia muita saudade. Dora e os irmãos viam a mãe falar do pai e sabiam que era apenas um jeito de lidar com a dor. Eles se amaram enquanto estiveram juntos, pensava.

Deitada na cama, Romana fechava os olhos e desejava esquecer. Não queria mais pensar no traste, nem no amor e nem em maldizê-lo. No fundo sabia que a vida fora boa para ela. Respirava fundo. Abria a gaveta e lia o cartão: “Mesmo que a noite pareça sem fim, você faz um sol dentro de mim”. Amanhã é mais um dia pintado na noite sem fim.


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terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O Homem Teimoso



Era um homem teimoso. Sua teimosia chegava antes de si. Um olhar adentrava a sala dizendo não.

Pegava sempre os mesmos caminhos. Comia sempre no mesmo horário. Tinha lugar marcado na mesa. A família se habituara, fingiam não se importar mais com as teimosias do dia a dia.

Àquela altura da vida não mudaria. Suas pernas já tremiam a cada passo, suas mãos bem marcadas dificultavam o dedo em riste. Usara demais, apontara para tantos.

Os filhos ensinavam aos netos a serem maleáveis. A esposa suspirava antes de cada fala do sujeito teimoso e vez ou outra virava os olhos e pronunciava as palavras que seriam ditas. Já sabia, seriam as mesmas palavras, a mesma entonação e ao mesmo lugar levariam.

Teimava desde pequeno. Escolhia as brincadeiras, era o dono da rua. Sua vontade era seu trunfo, bastava querer e pronto. Muitos abriam mão das escolhas a favor do homem teimoso, só para não vê-lo apelar, coisa que fazia sem esforço.

Um dia o homem teimou uma teimosia acalorada com o caixa do banco. Esse moço ainda tinha a virtude da paciência e explicara diversas vezes a posição da instituição a qual servia. Não era possível fazer a teimosa operação.

O homem teimoso, percebendo que sua teimosia estava prestes a ser vencida, até mesmo ignorada, fez uso de um recurso extremo. Tossiu, tossiu tanto que logo lhe trouxeram água fresca e o abanaram. Depois sentado em uma cadeira gorda, já mais calmo pediu a presença do gerente. O homem explicou à gerência que abrira sua conta ali antes mesmo do nascimento do moço grosseiro que o atendera ainda há pouco.

- “Qual senhor?”
- “Aquele ali...”, tentando apontar o dedo em riste, mas sem sucesso.

O gerente pediu que se acalmasse e que desta vez, apenas desta vez poderia fazer a operação, mas que aquele tipo de ação tinha sido cancelada pela companhia no mês anterior, porém a julgar pelo mal tratamento recebido dentro da agência e pela longa relação do homem e a instituição financeira, não custaria nada atendê-lo.

O homem teimoso sorriu. Já na saída lançou um olhar vitorioso sobre o moço no caixa, que nada entendia.

Voltava para casa satisfeito de sua teimosia. Vencia pelo cansaço do outro, mas vencia. A sensação de vitória percorria as pernas e os braços do homem teimoso, dando pequenos choques, salivando a boca e disparando o coração. Era forte, uma descarga de energia tremenda, fazendo dele o dono das ações, das suas, das dos outros, o senhor da verdade e das escolhas. Cada pedido era atendido, cada insistência era obedecida, já não precisava tanto do dedo em riste, pois tinha agora o peso da idade a seu favor. "Farão por mim o que eu quiser...", pensava enquanto caminhava para casa. Iludido e desatento, não notou o carro da funerária, nem a buzina, nem o grito. Morreu ali o sujeito teimoso.

A família providenciou o velório o mais rápido possível. A filha mais velha escolheu as flores, suas preferidas para se despedir do pai. O filho do meio decidiu o caminho do cortejo, mais longo e com menor tráfego, talvez bem diferente do que preferiria o pai. A esposa fez questão de escolher o terno do marido, que há muito não era usado, “- Ele não gostava, é uma pena...”, dizia aos filhos enquanto engolia o choro. A caçula resolveu que após o velório o pai seria cremado, coisa impensada pelo próprio, que julgava que todo corpo deveria ser enterrado e pronto. Mas a cremação era mais prática, defendia.

No salão, o corpo era velado. Entre tristeza, conversas soltas e anedotas familiares, que narravam às desventuras do homem teimoso, havia certo ar de conivência entre todos. Sabia-se que o certo a fazer naquele momento era exaltar as qualidades daquele que jazia em repouso eterno.

Assim, ao final, encerrada a cerimônia, com uma urna em mãos fria e cinza, era o homem teimoso, agora a lembrança de um homem de opinião, forte e incansável, orgulho da família, como haveria de ser. Vencia.


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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A Saudade



Sempre quando fecho os olhos parece que ainda estou na velha casa de madeira. Esta lembrança me acompanhará por toda a vida e me volta à memória sempre que o maravilhoso acontece.

Um longo caminho era percorrido, estrada reta e de pouca vista, duas pontes, horas arrastadas. Então, era descer do carro e lá estaria ela de pé em frente ao portão da velha casa de madeira, a razão de toda a maravilha da experiência.

Sabe como é se perder em abraço de portão? Braços curtos e cintura gorda. E não é que eu conseguia?! O legal era uma mão dar com a outra do outro lado formando um laço! Depois disso era olho no olho, coração batendo apressado. Vó e neta, abraço e laço. Parece até um quadro, vó, casa, portão, cachorro, pé de limão.

 Com a tarde azul e as noites perfumadas, o bom era dormir abraçada.

Casa de madeira, portão, abraço, laço, máquina fiando, cachorro latindo, batatas fritas bem coradas, fumo de corda, tomates cor de rosa. A magia com sorte duraria um mês.

Mas passou tão depressa. Daí difícil mesmo era entrar de novo no carro, aí sim o caminho ficava sem vista, se estendiam as pontes e as horas antes arrastadas, agora sem fim. Então era choro, aperto no peito, laço desfeito, saudade que não acabava. Ano que vem vai ter de novo? E teve..., por muitos anos ela ainda esteve lá, parada em frente ao portão da velha casa de madeira.

             Quando a saudade aperta sei que é só fechar os olhos de novo, e lá estaremos nós duas, quadro, laço, abraço, maravilha


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A Saudade de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Manoel e o Porco



               Era setembro. O ano, a memória fez o favor de engavetar com cuidado, de modo que nada mais fosse perdido. As crianças, hoje crescidas, dizem recordar com riqueza de detalhes o que os olhos aflitos assistiram.  O que antes fora temível e talvez até digno de piedade para os mais sensíveis, hoje é relatado como um fato pitoresco, daqueles que sem esforço arrancam sintomas e sem permissão invadem a imaginação de ouvintes de todas as ordens, transformando nossa história em uma saudosa recordação de meninice. Tudo se deu do encontro de um homem e um porco.

               Manoel era um homem com h maiúsculo, “cabra macho” por tradição, nordestino de nascimento, político por convicção, pai de família por paixão e descobrira-se então matador de porcos por falta de quem o fizesse.

               Faltando três meses para o natal, já se via hora de homens, como nosso destemido nordestino pai de família, queimar a cuca atrás dos primeiros preparativos para a ceia. Mais um cabrito deveria ser previamente, enclausurado e engordado nos três meses que se seguiriam e depois sacrificado, garantindo os festejos do dia 25.

               Seria como todos os anos. E teria mesmo sido, se Manoel tivesse aparecido em casa com um belo exemplar de cabrito, de olhar obediente, ciente de seu destino irremediável e às vistas de todos, exemplo ainda vivo da generosidade de Manoel com seus familiares.

               Desde a escolha até o preparo da iguaria, não era de se surpreender que quem segurasse as rédeas da ocasião fosse Manoel. O que o maturo nordestino não contava, era que naquele ano, cabritos estavam em falta. Ou então o costume de se preparar cabritos para a ceia de natal a cada ano que passava se tornava mais comum e atraente.

               A escolha do animal deveria ser feita de véspera para a engorda do bicho. Com as vísceras do animal era preparada uma gorda buchada, a cabeça deveria ser cozida, era uma verdadeira iguaria para Manoel, e dessa forma apreciada somente por ele. Com o restante era feito um assado, tudo caprichosamente preparado por Vó Maria, sogra de Manoel, avó de onze crianças, quase cega de um olho, mulher de gênio forte e cozinheira de mão cheia.

               Sem alternativa, Manoel se viu forçado a substituir o animal por qualquer outro que tivesse, contanto que fosse preparado a mesmo modo. Amarrava-se o animal no quintal e caberia às crianças alimentá-lo diariamente, tarefa que realizavam sem reclames para contento do pai.

               O porco chegou a casa, ainda novo, robusto, cor de rosa, com um olhar doce, assustado e um tanto inocente, como se tivesse dúvidas sobre seu destino. Assim, caiu na graça das crianças que o reconheceram à primeira vista como o mais novo mascote da família. Como tantos cabritos que já cruzaram o portão da casa de Manoel, o destino do porco era ficar preso em um cercado e ser muito bem alimentado até segunda ordem. A segunda ordem neste caso seria dada a Sebastião, amigo da família, cabra macho, segundo Manoel, e exímio matador de cabritos.

               - “É simples!” Explicava para Manoel todos os anos. – “É só amarrar o bicho de ponta cabeça, e correr a faca na garganta, ele sangra, não reclama e morre sem fazer dó!”
               E seria assim, caso o animal da história fosse mesmo um cabrito. Sebastião chegou cedo à casa do amigo para ver de perto o animal escolhido, um problema pra Sebastião, uma vez que este era também quase cego. Mirou bem o porco, e espantou-se ao perceber que não eram seus olhos que tentavam enganá-lo, se tratava mesmo de um suíno.  Sebastião foi categórico e proferiu a sentença: - “Um porco Manoel? Porco eu não mato! Esse é um bicho danado de escandaloso, dá pena só de olhar, e o sangue Manoel? E o sangue? Tem que rasgar em baixo da pata dianteira dele, na axila, um trabalho que só..., me desculpe, não tem jeito não, porco eu não mato!”

               Depois da conversa com Sebastião, o nordestino ficou pensativo. Não queria ele próprio ter de dar fim ao pobre animal, por duas razões simples, a primeira era que Manoel podia ser conhecedor das coisas da vida e corajoso o suficiente, mas então, saber matar um porco era outra coisa. A segunda, que não saía da cabeça de Manoel era a cabeça do porco. Ele pensava em como poderia apreciar aquela iguaria que horas antes o fitara com olhar de clemência.

               O tempo passava e dezembro já chegaria apressado. Enquanto Manoel pensava no que fazer para dar cabo do porco, as crianças, como toda criança tinham outra preocupação. E para as crianças, o vínculo com o animal estava mais que estabelecido. Era sim um porco, porém eles nunca tiveram um desses antes e sabiam que nunca viriam a ter um novamente se dependesse do pai. Passeavam com o porco pela vizinhança atraindo olhares e admiração dos amigos, todos queria conhecê-lo, dar uma volta segurando a corda que o enlaçava, exibir-se para todos os moradores da vila que tinham um cachorro, ou um gato, ou um passarinho. Nada era tão legal como ter um porco e escutar vez ou outra seu guincho carregado de pureza. E riam, riam de seu andar desajeitado, de suas orelhas caídas, de seu rabo enrolado e seu nariz com grandes buracos negros. Ai delas se o pai as pegasse às voltas com o bicho pela vizinhança.

                A verdade é que o porco precisava ser morto, e Manoel precisava de alguém que o fizesse. O escolhido foi o Chico, rapaz novo, franzino e “cabra frouxo” segundo seu tio Manoel.  Estavam proseando no quintal certa manhã enquanto fitavam o porco, agora gordo e farto, rodeado em seu cercado pelos olhares enfeitiçados das crianças.

         - “Escuta Chico, escuta bem que o que eu vou dizer. Vai ser de uma vez e sem rodeios: você vai matar aquele porco!” Manoel disse sem direcionar o olhar para o sobrinho, apenas fitando o porco enquanto mordiscava um fiapo de galho entre os dentes semi cerrados.
                Podiam-se ver os olhos de Manoel correndo pra longe dali enquanto o homem falava, suas sobrancelhas pareciam querer saltar para o topo da cabeça careca, denunciando que mais estava por vir. –“É, você vai matar esse porco e é logo! Dessa vez mergulhou fundo nos olhos de Chico enquanto falava. O rapazote engoliu seco.

               As crianças que antes riam e cantarolavam, espicharam os ouvidos. Os mais novos como um susto já tinham os olhos cheios d água. Todos olhavam para o Tio Chico esperando seu rebatimento. Chico soltou um gemido parecido com um riso debochado, respirou, sacudiu a cabeça, mirou os próprios pés e disse gaguejando:   - “Não mato nem galinha tio, acha que vou matar um porco?!” Riu-se num riso escorrido e manso.
               - “Vai! Porque eu to mandando!” Antes que Chico replicasse novamente, Manoel se pôs a falar:

               _- “Escuta cabra frouxo...” Nesse momento já era possível notar que o rapaz não teria muita escolha, ele sabia que qualquer tentativa de desobedecer a uma ordem do tio implicaria em concordar com o que acabara de ouvir: cabra frouxo!

               Chico sentia suas pernas bambearem, sua cabeça girar, sua visão sumir. Em meio à escuridão ele se viu de frente para o porco, de faca na mão, rodeado pelas crianças em prantos. O porco o desafiava como quem diz: -“Vai mesmo fazer isso comigo Chico? Terá coragem o bastante?” No devaneio de Chico, a voz vinda da boca do porco era a do tio Manoel. – “Vai me matar? Cabra frooouxo!!!” Chico acordou, viu que ainda estava sentado ao lado do Tio que o cuidava a espera de uma resposta. Chico só pôde balançar a cabeça positivamente.

               -“Muito bem, sabia que você faria!”

               No dia seguinte, contando apenas dois para o natal, Chico chegou cedo à casa do tio. Manoel já estava no quintal parado de frente para o porco rosado, este por sua vez, andava em círculos pelo cercado, parecendo, em uma tentativa desesperada, querer dissimular o significado dos olhos intimidadores do nordestino.

               Chico tossiu, arrancando Manoel de seus pensamentos homicidas. O tio pediu que o sobrinho o acompanhasse até a cozinha para dar-lhe as instruções necessárias, que nem mesmo ele conhecia ou poderia seguir à risca.

               - “É simples!” Disse fazendo uso das mesmas palavras de Sebastião, como se fosse ele nesta ocasião um exímio matador de porcos. – “É só levantar a pata dianteira, esquerda, note bem, a pata esquerda, e fazer um rasgo fundo na axila. O bicho vai sangrar até as tripas e vai ter morte rápida! Mas veja bem, seja firme Chico, seja firme que é um golpe só!” Manoel disse tudo isso de olho no porco, que continuava fingir-se indiferente à aquela discussão.

               As crianças, porém, não podiam fazer-se invisíveis, mas também não poderiam de forma alguma se posicionar na discussão, muito menos a favor de Rosado, era esse o nome do porco para elas. Olhavam para o porco, aparentemente distraído, para o pai visivelmente ansioso e para Chico que estava desesperado. Então fizeram a única coisa que poderiam fazer para atravessar da melhor maneira possível aquela situação, choraram, baixinho é claro, não poderiam despertar a cólera do pai que neste momento se concentrava no porco e no sobrinho, caso o último resolvesse mudar de idéia.

               Chico pensava em como seria bom se não fosse sobrinho de Manoel. Mas era, e agora o destino do porco estava em suas mãos.

               Manoel abriu o cercado. O porco recuou. Chico disfarçou o medo, deu cinco passos em direção ao porco e olhou para trás. Manoel já estava a alguns metros distante, observava tudo da varanda, da mesma de onde exigiu que Chico desse fim ao animal.

               As crianças optaram por entrar em casa, dessa forma evitariam ver o sofrimento de seu amigo Rosado e assim só guardariam dele boas lembranças. Os mais atrevidos se posicionaram nas janelas entreabertas e ficaram aguardando, ora abrindo, ora cerrando os olhos, levados pela curiosidade e pelo medo, ambos misericordiosos.

               Chico tinha em suas mãos a faca de Manoel, grande, afiada, com cabo revestido em couro, talvez de porco, quem sabe? O rapaz estava tão aflito, se sentia tão só e tão vigiado ao mesmo tempo. O olhar do porco dizia a Chico que nada estava acontecendo, uma vez que o animal continuava artificiosamente sem perceber a faca nas mãos de Chico, muito menos o seu propósito, como querendo escapar de sua fortuna.

               O olhar das crianças, embora clandestino, também se fazia notar, vez ou outra esbarravam nas grades das janelas, se acomodando para captar o melhor ângulo.

               Chico deu o último suspiro e encurralou o porco no final do cercado sem olhar diretamente em seus olhos. Levantou a pata dianteira, a esquerda conforme as instruções. Recolheu a mão direita que segurava a faca, e com um golpe rápido atingiu o porco. O que se seguiu após o golpe, ninguém jamais poderia prever, a não ser Sebastião, caso estivesse ali. Um grito, um relincho alto e desesperado. O barulho das janelas, todas se fechando juntas completavam o pandemônio. Chico, paralisado, se descuidou e deixou que o porco escorregasse se livrando de suas pernas.

               O animal sai a galope, foge do cercado em uma corrida frenética e desconcertada. Manoel põe as mãos no rosto desacreditando no rumo que a situação tomou. O porco, agora bem ciente do que lhe sucede, após rodear inúmeras vezes o quintal aos berros e sangrando, perde o senso de direção e vai parar dentro de casa, expulsando todos para o quintal. Gritos, berros, choro e agonia.

                Vó Maria assistia a tudo como se não confiasse. Viu o porco adentrar sua cozinha esguichando pavor, viu o sangue do animal tingir o chão. Presenciou Rosado atribulado, esbarrar em suas cadeiras, dar de frente com seu fogão, escorregar em seu tapete de barbantes, enfim, percorrer a casa inteira tentando amenizar seu sofrimento. Vó Maria achou que bastara, fez uso de uma vassoura descabelada e atingiu inúmeras vezes o animal, já ferido, até colocá-lo de volta para fora, onde Chico  permanecia na mesma posição, com a faca na mão, semi agachado e perplexo.

               Mas e Manoel, onde estaria o valente nordestino em meio a essa confusão toda? Onde estaria ele, que não tentava por si mesmo agarrar o porco e num ato desesperado, talvez asfixiá-lo até a morte? Pois não fosse Manoel, o sucedido não seria assim tão digno de ser contado e recontado. Não fosse ele e o desfecho que deu nesse surpreendente ocorrido, essa seria apenas mais uma história, tal quais tantas contadas por aí.

               Manoel enfim chegou. Veio com o olhar torpe, gritando palavrões dirigidos a Chico, afastando cada móvel e criatura que se pusesse em seu caminho. Correu em direção ao porco, que agora, ainda tomado em agonia, estava tombado no chão se arrastando em círculos, utilizando apenas as patas traseiras para qualquer movimento.

               Manoel parou de frente para o animal, que por sorte não o reconhecera. Enrijeceu o corpo, de modo que apenas sua cabeça estivesse baixa, sacou sua pistola da cinta, mirou a cabeça do porco e descarregou.

               Um silêncio se seguiu a ação inesperada de Manoel. O nordestino ficou ali ainda por alguns segundos, enrijecido, suspirando comprido, suando ora frio, ora quente, com olhar repulsivo e ao mesmo tempo aliviado. Acabou. A trajetória do porco tivera um fim.

               Manoel guardou a arma ainda quente em sua cinta, ajeitou as calças até o começo da cintura, secou a testa com um lenço úmido e sacudiu a cabeça dando uma boa olhada em volta. Viu as crianças em baixo da mesa, algumas ainda de olhos fechados, outras com olhos esbugalhados. Viu Chico com a faca na mão e lágrimas nos olhos, e viu Vó Maria da janela da cozinha, também a sacudir a cabeça em sinal de reprovação.

               Dirigindo-se ao sobrinho, Manoel soltou um grunhido incompreensível e disse quebrando o silêncio angustiante: – “Cabra frouxo! Eu disse que era simples!”

               Chico se levantou, secou os olhos e deixou a faca cair. Despediu-se do tio apenas acenando com a cabeça, colocou as mãos no bolso e caminhou até o portão sem dizer palavra.

               Manoel então pediu que as crianças limpassem toda a bagunça e a Vó Maria que cuidasse do preparo da carne.

               As crianças como sempre se mostraram obedientes, evitaram olhar para o corpo de Rosado estendido no chão, desviaram-se do pai e foram tratar de seus afazeres. Vó Maria por sua vez, não se mostrou tão preocupada em contentar ao genro, estava desorientada com tudo que vira, principalmente com a solução para findar o acontecido.

               De braços cruzados, segurando a ponta do nariz como costumava fazer, foi absoluta: - “Manoel, este porco foi amaldiçoado. Sofreu demais o pobre, sem contar que tem agora uma bala na cabeça, arrume outra carne Manoel, porque esse porco eu não asso, não, não, de jeito nenhum! Esse porco eu não asso!”


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Manoel e o Porco de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Anetta


Eram cada vez mais freqüentes as fugas de Anetta.  Precipitavam-se sempre, ora sem motivo, ora quando o inesperado a visitava. Era mais rápido do que ela mesma.

A lembrança mais antiga de suas fugas foi há mais de quinze anos. Anetta, então com dez invernos, se vira cercada de meninas da mesma idade no pátio da escola. Eram dois grupos, e entre eles Anetta e um bueiro. O motivo da perseguição se perdera em meio a tantas outras que a menina sofrera. Quando deu por si, estava no buraco escuro. Não, não fora jogada ali nem por um grupo, nem por outro. Fugiu. Parada no meio da escada que findava em água suja, ainda podia ouvir os gritos frenéticos das garotas mais agitadas e os passos apressados da inspetora. Só saíra de dentro do bueiro pelos braços da mãe.

Depois desse dia, fugir ficou fácil. A menina já entrava nos lugares marcando portas, janelas e outras saídas estratégicas que permitissem sua fuga. Nada poderia detê-la.

“Anetta já nasceu fugindo”, disse a mãe para uma conhecida. – “Escorregou para fora de mim, antes que eu me desse conta. Puxou ao pai!” Desabafou ao fim. O pai fugiu de casa quando criança e depois fugiu da esposa grávida. Não se sabia mais nada sobre ele.

Anetta fugia de tudo e de todos. Gostava da emoção de se ausentar depressa de lugares comuns, antes que pudessem perceber sua ausência súbita. Tinha loucura ao observar de longe os rostos abismados com seu sumiço. Certa vez ouviu uma amiga gritar muito assustada, certa de que Anetta tinha sido raptada, tamanha rapidez com que desapareceu. Divertia-se
.
Era tão acostumada a sumir a garota, que certas pessoas duvidavam se ela existia mesmo. O Seu Joaquim da banca de jornal era um desses descrentes. A menina aparecia semanalmente, folheava revistas e perguntava sobre o resultado do jogo do bicho. Seu Joaquim molhava a boca para responder e quando dava por si, falava sozinho.

Na padaria era a mesma coisa, a menina pedia pães e brioches e quando a atendente se virava, estava só, nem sinal da jovenzinha espevitada.

Com o tempo a mãe de Anetta até tentou interferir. Aguardava a filha em casa, mas Anetta sempre fugia da conversa.

“Trabalharei para a CIA”, pensava a menina. Imaginava ser um dia uma espiã de elite, dessas que concluem suas missões sem ser notadas.

Mas Anetta foi crescendo. Fugir ficou cada vez mais complicado. Já não passava em espaços pequenos como grades e bueiros. Já se atrapalhava com escadas estreitas e portas semi- abertas. Vez ou outra tropeçava evidenciando sua fuga. Anetta era pega vez e outra.

Por volta dos 20 anos o sonho de ser espiã deu lugar à necessidade de trabalhar. A mãe da jovem morreu. Anetta ficou só. Não podia mais fugir, caso contrário perderia o emprego. Não podia se esconder, as pessoas sempre estavam por perto precisando de sua presença. Nenhuma saída estratégica, por melhor que pudesse parecer, poderia ser usada.

Anetta ficou triste. Percebeu que crescer implicava em ser alguém, em existir de verdade, sem meias aparições, sem brincadeiras de menina invisível.

Mas um dia, um belo dia de sol, quando Anetta caminhava cabisbaixa para o seu trabalho de gente grande, o Circo Majestoso chegou à cidade.

Anetta correu para comprar ingresso e sentar na primeira fila. A moça ficou encantada com cada número apresentado. O palhaço e sua graça despretensiosa fizeram Anetta chorar de rir. E o atirador de facas? Como poderia alguém ter a mira tão certeira? Os olhos mal podiam enxergar cada golpe. Depois vieram os acrobatas dando um nó na idéia de todos, tamanho a rapidez de seus saltos e giros no ar sem fim! 

Quando Anetta achava que o espetáculo estava acabando, as luzes piscaram e uma música altíssima anunciou o próximo número. Um homem elegante saia em meio a uma nuvem de fumaça. Vestido de preto e com uma grande cartola na cabeça ele caminhou em direção a moça e disse: - “você”. Anetta se levantou sem saber como e, quando deu por si estava em cena, dentro de uma caixa grande e iluminada. O número do desaparecimento era o mais aguardado da noite. Mulheres, homens e crianças batiam palmas e os pés no chão. Anetta olhava para o mágico como que hipnotizada. Pensou a garota: “Essa é a minha grande chance”! Anetta respirou fundo, contemplou a platéia em meio a penumbra, fechou os olhos e deu um largo sorriso.

A caixa se fechou! As luzes se apagaram! A música parou! Anetta sumiu!


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Anetta de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.