O menino corria tão intensamente,
que entre uma pedra e outra que caíam do bolso, deixava para trás, além de suor
e poeira, pedaços de borracha que soltavam dos chinelos velhos.
Apressado, o garoto não olhava
para trás. No pensamento confuso, lembrava poucas palavras. Como era mesmo? “Santificado
seja o teu nome”, ou “seja o vosso nome”? Achava mais bonito que fosse “vosso
nome”, gostava daquele jeito de se referir a ELE, “vosso”, “estais”. Não se lembrava
de ver ninguém falando assim. Por outro lado não poderia perguntar em casa, lá
ninguém gostava dessas coisas que “não existem”, existem?
O professor tinha dito que se
falasse o texto o todo, era possível ser ouvido. Mas é tão longo, difícil
lembrar todas as partes.
Passou pelo portão sem tocá-lo.
Correu para os fundos da casa e pegou uma caixa escondida em meio às roupas
sujas da família. Embrulhou cuidadosamente em uma toalha e entrou.
Parado do lado de dentro olhou
com atenção o caminho que o levaria ao pequeno cômodo. Viu um gato, dois gatos,
a avó parada em frente ao fogão. Mais adiante viu uma irmã, duas irmãs, mais um
irmão, todos distraídos.
Se pisasse devagar, ninguém
escutaria, mas se fosse rápido, seria mais natural, do seu jeito de menino
levado e assim ninguém daria atenção ao seu propósito.
No primeiro passo pensou: _ “Seja
feita a vossa vontade. Quando deu por si já estava lá, só ele, a caixa e o
pequeno altar. Bem sabia que privada não era altar, mas se abaixasse a tampa
poderia colocar a caixa em cima e daria certo.
Abriu a caixa e tirou um
embrulho. Com a toalha suja secou o suor do rosto, das mãos e forrou o altar
improvisado. Desembrulhou a peça e a colocou sobre a tampa da latrina.
Ajoelhou-se, com as mãos molhadas e começou a moldá-la. Já trabalhava com a
peça de sabão há alguns dias. Já estava quase tomando a forma de uma cruz, tal
qual a da igreja, a da história do Jesus contada nas aulas de religião, que só
de lembrar lavavam os olhos do menino. Queria era terminar logo para poder
usá-la enquanto falava a reza inteira. Quem sabe assim Ele ouviria? E se
ouvindo o menino, Ele trouxesse o pai de longe? E se quando ouvisse e visse a
peça pronta Ele fizesse a alegria tomar conta da casa, dos irmãos, da avó tão
cansada e da mãe, e então todos passassem a acreditar no Jesus e não só na
política. Será que o Jesus era comunista também?
Quando começava a pensar nas
coisas que ouvira e nas histórias que aprendera, só de imaginar que tudo aquilo
fosse verdade, quando os olhos molhados já não enxergavam a forma em cruz e
quando as mãos se perdiam em meio a tanto sabão, alguém batia na porta.
Alguém batia na porta. Um irmão
apressado precisava usar o banheiro. Um irmão que não sabia das coisas como ele
e, que talvez, se soubesse, correria para contar a todos o quanto o menino era
bobo de acreditar nessas coisas que “não existiam” e que “deixavam o homem fraco”.
Agora era tirar o sabão das mãos,
embrulhar a cruz ainda úmida e desmanchar o culto, oculto.
Tinha que se lembrar de perguntar
para o professor se era a “tua vontade” ou a “vossa vontade”, e porque sempre
que lia no livro sagrado, Jesus era “Ele” com letra maiúscula. Se lembrasse, ia
perguntar também se ele ouvia o pensamento, e se perdoava menino que jogasse
pedra nas janelas vizinhas.
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