domingo, 11 de janeiro de 2015

Manoel e o Porco



               Era setembro. O ano, a memória fez o favor de engavetar com cuidado, de modo que nada mais fosse perdido. As crianças, hoje crescidas, dizem recordar com riqueza de detalhes o que os olhos aflitos assistiram.  O que antes fora temível e talvez até digno de piedade para os mais sensíveis, hoje é relatado como um fato pitoresco, daqueles que sem esforço arrancam sintomas e sem permissão invadem a imaginação de ouvintes de todas as ordens, transformando nossa história em uma saudosa recordação de meninice. Tudo se deu do encontro de um homem e um porco.

               Manoel era um homem com h maiúsculo, “cabra macho” por tradição, nordestino de nascimento, político por convicção, pai de família por paixão e descobrira-se então matador de porcos por falta de quem o fizesse.

               Faltando três meses para o natal, já se via hora de homens, como nosso destemido nordestino pai de família, queimar a cuca atrás dos primeiros preparativos para a ceia. Mais um cabrito deveria ser previamente, enclausurado e engordado nos três meses que se seguiriam e depois sacrificado, garantindo os festejos do dia 25.

               Seria como todos os anos. E teria mesmo sido, se Manoel tivesse aparecido em casa com um belo exemplar de cabrito, de olhar obediente, ciente de seu destino irremediável e às vistas de todos, exemplo ainda vivo da generosidade de Manoel com seus familiares.

               Desde a escolha até o preparo da iguaria, não era de se surpreender que quem segurasse as rédeas da ocasião fosse Manoel. O que o maturo nordestino não contava, era que naquele ano, cabritos estavam em falta. Ou então o costume de se preparar cabritos para a ceia de natal a cada ano que passava se tornava mais comum e atraente.

               A escolha do animal deveria ser feita de véspera para a engorda do bicho. Com as vísceras do animal era preparada uma gorda buchada, a cabeça deveria ser cozida, era uma verdadeira iguaria para Manoel, e dessa forma apreciada somente por ele. Com o restante era feito um assado, tudo caprichosamente preparado por Vó Maria, sogra de Manoel, avó de onze crianças, quase cega de um olho, mulher de gênio forte e cozinheira de mão cheia.

               Sem alternativa, Manoel se viu forçado a substituir o animal por qualquer outro que tivesse, contanto que fosse preparado a mesmo modo. Amarrava-se o animal no quintal e caberia às crianças alimentá-lo diariamente, tarefa que realizavam sem reclames para contento do pai.

               O porco chegou a casa, ainda novo, robusto, cor de rosa, com um olhar doce, assustado e um tanto inocente, como se tivesse dúvidas sobre seu destino. Assim, caiu na graça das crianças que o reconheceram à primeira vista como o mais novo mascote da família. Como tantos cabritos que já cruzaram o portão da casa de Manoel, o destino do porco era ficar preso em um cercado e ser muito bem alimentado até segunda ordem. A segunda ordem neste caso seria dada a Sebastião, amigo da família, cabra macho, segundo Manoel, e exímio matador de cabritos.

               - “É simples!” Explicava para Manoel todos os anos. – “É só amarrar o bicho de ponta cabeça, e correr a faca na garganta, ele sangra, não reclama e morre sem fazer dó!”
               E seria assim, caso o animal da história fosse mesmo um cabrito. Sebastião chegou cedo à casa do amigo para ver de perto o animal escolhido, um problema pra Sebastião, uma vez que este era também quase cego. Mirou bem o porco, e espantou-se ao perceber que não eram seus olhos que tentavam enganá-lo, se tratava mesmo de um suíno.  Sebastião foi categórico e proferiu a sentença: - “Um porco Manoel? Porco eu não mato! Esse é um bicho danado de escandaloso, dá pena só de olhar, e o sangue Manoel? E o sangue? Tem que rasgar em baixo da pata dianteira dele, na axila, um trabalho que só..., me desculpe, não tem jeito não, porco eu não mato!”

               Depois da conversa com Sebastião, o nordestino ficou pensativo. Não queria ele próprio ter de dar fim ao pobre animal, por duas razões simples, a primeira era que Manoel podia ser conhecedor das coisas da vida e corajoso o suficiente, mas então, saber matar um porco era outra coisa. A segunda, que não saía da cabeça de Manoel era a cabeça do porco. Ele pensava em como poderia apreciar aquela iguaria que horas antes o fitara com olhar de clemência.

               O tempo passava e dezembro já chegaria apressado. Enquanto Manoel pensava no que fazer para dar cabo do porco, as crianças, como toda criança tinham outra preocupação. E para as crianças, o vínculo com o animal estava mais que estabelecido. Era sim um porco, porém eles nunca tiveram um desses antes e sabiam que nunca viriam a ter um novamente se dependesse do pai. Passeavam com o porco pela vizinhança atraindo olhares e admiração dos amigos, todos queria conhecê-lo, dar uma volta segurando a corda que o enlaçava, exibir-se para todos os moradores da vila que tinham um cachorro, ou um gato, ou um passarinho. Nada era tão legal como ter um porco e escutar vez ou outra seu guincho carregado de pureza. E riam, riam de seu andar desajeitado, de suas orelhas caídas, de seu rabo enrolado e seu nariz com grandes buracos negros. Ai delas se o pai as pegasse às voltas com o bicho pela vizinhança.

                A verdade é que o porco precisava ser morto, e Manoel precisava de alguém que o fizesse. O escolhido foi o Chico, rapaz novo, franzino e “cabra frouxo” segundo seu tio Manoel.  Estavam proseando no quintal certa manhã enquanto fitavam o porco, agora gordo e farto, rodeado em seu cercado pelos olhares enfeitiçados das crianças.

         - “Escuta Chico, escuta bem que o que eu vou dizer. Vai ser de uma vez e sem rodeios: você vai matar aquele porco!” Manoel disse sem direcionar o olhar para o sobrinho, apenas fitando o porco enquanto mordiscava um fiapo de galho entre os dentes semi cerrados.
                Podiam-se ver os olhos de Manoel correndo pra longe dali enquanto o homem falava, suas sobrancelhas pareciam querer saltar para o topo da cabeça careca, denunciando que mais estava por vir. –“É, você vai matar esse porco e é logo! Dessa vez mergulhou fundo nos olhos de Chico enquanto falava. O rapazote engoliu seco.

               As crianças que antes riam e cantarolavam, espicharam os ouvidos. Os mais novos como um susto já tinham os olhos cheios d água. Todos olhavam para o Tio Chico esperando seu rebatimento. Chico soltou um gemido parecido com um riso debochado, respirou, sacudiu a cabeça, mirou os próprios pés e disse gaguejando:   - “Não mato nem galinha tio, acha que vou matar um porco?!” Riu-se num riso escorrido e manso.
               - “Vai! Porque eu to mandando!” Antes que Chico replicasse novamente, Manoel se pôs a falar:

               _- “Escuta cabra frouxo...” Nesse momento já era possível notar que o rapaz não teria muita escolha, ele sabia que qualquer tentativa de desobedecer a uma ordem do tio implicaria em concordar com o que acabara de ouvir: cabra frouxo!

               Chico sentia suas pernas bambearem, sua cabeça girar, sua visão sumir. Em meio à escuridão ele se viu de frente para o porco, de faca na mão, rodeado pelas crianças em prantos. O porco o desafiava como quem diz: -“Vai mesmo fazer isso comigo Chico? Terá coragem o bastante?” No devaneio de Chico, a voz vinda da boca do porco era a do tio Manoel. – “Vai me matar? Cabra frooouxo!!!” Chico acordou, viu que ainda estava sentado ao lado do Tio que o cuidava a espera de uma resposta. Chico só pôde balançar a cabeça positivamente.

               -“Muito bem, sabia que você faria!”

               No dia seguinte, contando apenas dois para o natal, Chico chegou cedo à casa do tio. Manoel já estava no quintal parado de frente para o porco rosado, este por sua vez, andava em círculos pelo cercado, parecendo, em uma tentativa desesperada, querer dissimular o significado dos olhos intimidadores do nordestino.

               Chico tossiu, arrancando Manoel de seus pensamentos homicidas. O tio pediu que o sobrinho o acompanhasse até a cozinha para dar-lhe as instruções necessárias, que nem mesmo ele conhecia ou poderia seguir à risca.

               - “É simples!” Disse fazendo uso das mesmas palavras de Sebastião, como se fosse ele nesta ocasião um exímio matador de porcos. – “É só levantar a pata dianteira, esquerda, note bem, a pata esquerda, e fazer um rasgo fundo na axila. O bicho vai sangrar até as tripas e vai ter morte rápida! Mas veja bem, seja firme Chico, seja firme que é um golpe só!” Manoel disse tudo isso de olho no porco, que continuava fingir-se indiferente à aquela discussão.

               As crianças, porém, não podiam fazer-se invisíveis, mas também não poderiam de forma alguma se posicionar na discussão, muito menos a favor de Rosado, era esse o nome do porco para elas. Olhavam para o porco, aparentemente distraído, para o pai visivelmente ansioso e para Chico que estava desesperado. Então fizeram a única coisa que poderiam fazer para atravessar da melhor maneira possível aquela situação, choraram, baixinho é claro, não poderiam despertar a cólera do pai que neste momento se concentrava no porco e no sobrinho, caso o último resolvesse mudar de idéia.

               Chico pensava em como seria bom se não fosse sobrinho de Manoel. Mas era, e agora o destino do porco estava em suas mãos.

               Manoel abriu o cercado. O porco recuou. Chico disfarçou o medo, deu cinco passos em direção ao porco e olhou para trás. Manoel já estava a alguns metros distante, observava tudo da varanda, da mesma de onde exigiu que Chico desse fim ao animal.

               As crianças optaram por entrar em casa, dessa forma evitariam ver o sofrimento de seu amigo Rosado e assim só guardariam dele boas lembranças. Os mais atrevidos se posicionaram nas janelas entreabertas e ficaram aguardando, ora abrindo, ora cerrando os olhos, levados pela curiosidade e pelo medo, ambos misericordiosos.

               Chico tinha em suas mãos a faca de Manoel, grande, afiada, com cabo revestido em couro, talvez de porco, quem sabe? O rapaz estava tão aflito, se sentia tão só e tão vigiado ao mesmo tempo. O olhar do porco dizia a Chico que nada estava acontecendo, uma vez que o animal continuava artificiosamente sem perceber a faca nas mãos de Chico, muito menos o seu propósito, como querendo escapar de sua fortuna.

               O olhar das crianças, embora clandestino, também se fazia notar, vez ou outra esbarravam nas grades das janelas, se acomodando para captar o melhor ângulo.

               Chico deu o último suspiro e encurralou o porco no final do cercado sem olhar diretamente em seus olhos. Levantou a pata dianteira, a esquerda conforme as instruções. Recolheu a mão direita que segurava a faca, e com um golpe rápido atingiu o porco. O que se seguiu após o golpe, ninguém jamais poderia prever, a não ser Sebastião, caso estivesse ali. Um grito, um relincho alto e desesperado. O barulho das janelas, todas se fechando juntas completavam o pandemônio. Chico, paralisado, se descuidou e deixou que o porco escorregasse se livrando de suas pernas.

               O animal sai a galope, foge do cercado em uma corrida frenética e desconcertada. Manoel põe as mãos no rosto desacreditando no rumo que a situação tomou. O porco, agora bem ciente do que lhe sucede, após rodear inúmeras vezes o quintal aos berros e sangrando, perde o senso de direção e vai parar dentro de casa, expulsando todos para o quintal. Gritos, berros, choro e agonia.

                Vó Maria assistia a tudo como se não confiasse. Viu o porco adentrar sua cozinha esguichando pavor, viu o sangue do animal tingir o chão. Presenciou Rosado atribulado, esbarrar em suas cadeiras, dar de frente com seu fogão, escorregar em seu tapete de barbantes, enfim, percorrer a casa inteira tentando amenizar seu sofrimento. Vó Maria achou que bastara, fez uso de uma vassoura descabelada e atingiu inúmeras vezes o animal, já ferido, até colocá-lo de volta para fora, onde Chico  permanecia na mesma posição, com a faca na mão, semi agachado e perplexo.

               Mas e Manoel, onde estaria o valente nordestino em meio a essa confusão toda? Onde estaria ele, que não tentava por si mesmo agarrar o porco e num ato desesperado, talvez asfixiá-lo até a morte? Pois não fosse Manoel, o sucedido não seria assim tão digno de ser contado e recontado. Não fosse ele e o desfecho que deu nesse surpreendente ocorrido, essa seria apenas mais uma história, tal quais tantas contadas por aí.

               Manoel enfim chegou. Veio com o olhar torpe, gritando palavrões dirigidos a Chico, afastando cada móvel e criatura que se pusesse em seu caminho. Correu em direção ao porco, que agora, ainda tomado em agonia, estava tombado no chão se arrastando em círculos, utilizando apenas as patas traseiras para qualquer movimento.

               Manoel parou de frente para o animal, que por sorte não o reconhecera. Enrijeceu o corpo, de modo que apenas sua cabeça estivesse baixa, sacou sua pistola da cinta, mirou a cabeça do porco e descarregou.

               Um silêncio se seguiu a ação inesperada de Manoel. O nordestino ficou ali ainda por alguns segundos, enrijecido, suspirando comprido, suando ora frio, ora quente, com olhar repulsivo e ao mesmo tempo aliviado. Acabou. A trajetória do porco tivera um fim.

               Manoel guardou a arma ainda quente em sua cinta, ajeitou as calças até o começo da cintura, secou a testa com um lenço úmido e sacudiu a cabeça dando uma boa olhada em volta. Viu as crianças em baixo da mesa, algumas ainda de olhos fechados, outras com olhos esbugalhados. Viu Chico com a faca na mão e lágrimas nos olhos, e viu Vó Maria da janela da cozinha, também a sacudir a cabeça em sinal de reprovação.

               Dirigindo-se ao sobrinho, Manoel soltou um grunhido incompreensível e disse quebrando o silêncio angustiante: – “Cabra frouxo! Eu disse que era simples!”

               Chico se levantou, secou os olhos e deixou a faca cair. Despediu-se do tio apenas acenando com a cabeça, colocou as mãos no bolso e caminhou até o portão sem dizer palavra.

               Manoel então pediu que as crianças limpassem toda a bagunça e a Vó Maria que cuidasse do preparo da carne.

               As crianças como sempre se mostraram obedientes, evitaram olhar para o corpo de Rosado estendido no chão, desviaram-se do pai e foram tratar de seus afazeres. Vó Maria por sua vez, não se mostrou tão preocupada em contentar ao genro, estava desorientada com tudo que vira, principalmente com a solução para findar o acontecido.

               De braços cruzados, segurando a ponta do nariz como costumava fazer, foi absoluta: - “Manoel, este porco foi amaldiçoado. Sofreu demais o pobre, sem contar que tem agora uma bala na cabeça, arrume outra carne Manoel, porque esse porco eu não asso, não, não, de jeito nenhum! Esse porco eu não asso!”


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Manoel e o Porco de Juana Correia é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

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