Era
setembro. O ano, a memória fez o favor de engavetar com cuidado, de modo que
nada mais fosse perdido. As crianças, hoje crescidas, dizem recordar com
riqueza de detalhes o que os olhos aflitos assistiram. O que antes fora temível e talvez até digno
de piedade para os mais sensíveis, hoje é relatado como um fato pitoresco,
daqueles que sem esforço arrancam sintomas e sem permissão invadem a imaginação
de ouvintes de todas as ordens, transformando nossa história em uma saudosa recordação
de meninice. Tudo se deu do encontro de um homem e um porco.
Manoel
era um homem com h maiúsculo, “cabra macho” por tradição, nordestino de
nascimento, político por convicção, pai de família por paixão e descobrira-se
então matador de porcos por falta de quem o fizesse.
Faltando
três meses para o natal, já se via hora de homens, como nosso destemido
nordestino pai de família, queimar a cuca atrás dos primeiros preparativos para
a ceia. Mais um cabrito deveria ser previamente, enclausurado e engordado nos
três meses que se seguiriam e depois sacrificado, garantindo os festejos do dia
25.
Seria
como todos os anos. E teria mesmo sido, se Manoel tivesse aparecido em casa com
um belo exemplar de cabrito, de olhar obediente, ciente de seu destino
irremediável e às vistas de todos, exemplo ainda vivo da generosidade de Manoel
com seus familiares.
Desde
a escolha até o preparo da iguaria, não era de se surpreender que quem
segurasse as rédeas da ocasião fosse Manoel. O que o maturo nordestino não
contava, era que naquele ano, cabritos estavam em falta. Ou então o costume de
se preparar cabritos para a ceia de natal a cada ano que passava se tornava
mais comum e atraente.
A
escolha do animal deveria ser feita de véspera para a engorda do bicho. Com as vísceras
do animal era preparada uma gorda buchada, a cabeça deveria ser cozida, era uma
verdadeira iguaria para Manoel, e dessa forma apreciada somente por ele. Com o
restante era feito um assado, tudo caprichosamente preparado por Vó Maria,
sogra de Manoel, avó de onze crianças, quase cega de um olho, mulher de gênio
forte e cozinheira de mão cheia.
Sem
alternativa, Manoel se viu forçado a substituir o animal por qualquer outro que
tivesse, contanto que fosse preparado a mesmo modo. Amarrava-se o animal no
quintal e caberia às crianças alimentá-lo diariamente, tarefa que realizavam
sem reclames para contento do pai.
O
porco chegou a casa, ainda novo, robusto, cor de rosa, com um olhar doce,
assustado e um tanto inocente, como se tivesse dúvidas sobre seu destino. Assim,
caiu na graça das crianças que o reconheceram à primeira vista como o mais novo
mascote da família. Como tantos cabritos que já cruzaram o portão da casa de
Manoel, o destino do porco era ficar preso em um cercado e ser muito bem
alimentado até segunda ordem. A segunda ordem neste caso seria dada a
Sebastião, amigo da família, cabra macho, segundo Manoel, e exímio matador de
cabritos.
-
“É simples!” Explicava para Manoel todos os anos. – “É só amarrar o bicho de
ponta cabeça, e correr a faca na garganta, ele sangra, não reclama e morre sem
fazer dó!”
E
seria assim, caso o animal da história fosse mesmo um cabrito. Sebastião chegou
cedo à casa do amigo para ver de perto o animal escolhido, um problema pra
Sebastião, uma vez que este era também quase cego. Mirou bem o porco, e
espantou-se ao perceber que não eram seus olhos que tentavam enganá-lo, se
tratava mesmo de um suíno. Sebastião foi
categórico e proferiu a sentença: - “Um porco Manoel? Porco eu não mato! Esse é
um bicho danado de escandaloso, dá pena só de olhar, e o sangue Manoel? E o
sangue? Tem que rasgar em baixo da pata dianteira dele, na axila, um trabalho que só...,
me desculpe, não tem jeito não, porco eu não mato!”
Depois
da conversa com Sebastião, o nordestino ficou pensativo. Não queria ele próprio
ter de dar fim ao pobre animal, por duas razões simples, a primeira era que
Manoel podia ser conhecedor das coisas da vida e corajoso o suficiente, mas
então, saber matar um porco era outra coisa. A segunda, que não saía da cabeça
de Manoel era a cabeça do porco. Ele pensava em como poderia apreciar aquela
iguaria que horas antes o fitara com olhar de clemência.
O
tempo passava e dezembro já chegaria apressado. Enquanto Manoel pensava no que
fazer para dar cabo do porco, as crianças, como toda criança tinham outra
preocupação. E para as crianças, o vínculo com o animal estava mais que
estabelecido. Era sim um porco, porém eles nunca tiveram um desses antes e
sabiam que nunca viriam a ter um novamente se dependesse do pai. Passeavam com
o porco pela vizinhança atraindo olhares e admiração dos amigos, todos queria
conhecê-lo, dar uma volta segurando a corda que o enlaçava, exibir-se para
todos os moradores da vila que tinham um cachorro, ou um gato, ou um
passarinho. Nada era tão legal como ter um porco e escutar vez ou outra seu guincho carregado de pureza. E riam, riam de seu andar desajeitado, de suas
orelhas caídas, de seu rabo enrolado e seu nariz com grandes buracos negros. Ai
delas se o pai as pegasse às voltas com o bicho pela vizinhança.
A verdade é que o porco precisava ser morto, e
Manoel precisava de alguém que o fizesse. O escolhido foi o Chico, rapaz novo,
franzino e “cabra frouxo” segundo seu tio Manoel. Estavam proseando no quintal certa manhã
enquanto fitavam o porco, agora gordo e farto, rodeado em seu cercado pelos
olhares enfeitiçados das crianças.
- “Escuta
Chico, escuta bem que o que eu vou dizer. Vai ser de uma vez e sem rodeios:
você vai matar aquele porco!” Manoel disse sem direcionar o olhar para o
sobrinho, apenas fitando o porco enquanto mordiscava um fiapo de galho entre os
dentes semi cerrados.
Podiam-se ver os olhos de Manoel correndo pra
longe dali enquanto o homem falava, suas sobrancelhas pareciam querer saltar
para o topo da cabeça careca, denunciando que mais estava por vir. –“É, você
vai matar esse porco e é logo! Dessa vez mergulhou fundo nos olhos de Chico
enquanto falava. O rapazote engoliu seco.
As
crianças que antes riam e cantarolavam, espicharam os ouvidos. Os mais novos
como um susto já tinham os olhos cheios d água. Todos olhavam para o Tio Chico
esperando seu rebatimento. Chico soltou um gemido parecido com um riso
debochado, respirou, sacudiu a cabeça, mirou os próprios pés e disse
gaguejando: -
“Não mato nem galinha tio, acha que vou matar um porco?!” Riu-se num riso
escorrido e manso.
-
“Vai! Porque eu to mandando!” Antes que Chico replicasse novamente, Manoel se
pôs a falar:
_-
“Escuta cabra frouxo...” Nesse momento já era possível notar que o rapaz não
teria muita escolha, ele sabia que qualquer tentativa de desobedecer a uma
ordem do tio implicaria em concordar com o que acabara de ouvir: cabra frouxo!
Chico
sentia suas pernas bambearem, sua cabeça girar, sua visão sumir. Em meio à
escuridão ele se viu de frente para o porco, de faca na mão, rodeado pelas
crianças em prantos. O porco o desafiava como quem diz: -“Vai mesmo fazer isso
comigo Chico? Terá coragem o bastante?” No devaneio de Chico, a voz vinda da
boca do porco era a do tio Manoel. – “Vai me matar? Cabra frooouxo!!!” Chico
acordou, viu que ainda estava sentado ao lado do Tio que o cuidava a espera de
uma resposta. Chico só pôde balançar a cabeça positivamente.
-“Muito
bem, sabia que você faria!”
No
dia seguinte, contando apenas dois para o natal, Chico chegou cedo à casa do
tio. Manoel já estava no quintal parado de frente para o porco rosado, este por
sua vez, andava em círculos pelo cercado, parecendo, em uma tentativa
desesperada, querer dissimular o significado dos olhos intimidadores do
nordestino.
Chico
tossiu, arrancando Manoel de seus pensamentos homicidas. O tio pediu que o sobrinho
o acompanhasse até a cozinha para dar-lhe as instruções necessárias, que nem
mesmo ele conhecia ou poderia seguir à risca.
-
“É simples!” Disse fazendo uso das mesmas palavras de Sebastião, como se fosse
ele nesta ocasião um exímio matador de porcos. – “É só levantar a pata
dianteira, esquerda, note bem, a pata esquerda, e fazer um rasgo fundo na axila. O bicho
vai sangrar até as tripas e vai ter morte rápida! Mas veja bem, seja firme
Chico, seja firme que é um golpe só!” Manoel disse tudo isso de olho no porco,
que continuava fingir-se indiferente à aquela discussão.
As
crianças, porém, não podiam fazer-se invisíveis, mas também não poderiam de
forma alguma se posicionar na discussão, muito menos a favor de Rosado, era
esse o nome do porco para elas. Olhavam para o porco, aparentemente distraído,
para o pai visivelmente ansioso e para Chico que estava desesperado. Então
fizeram a única coisa que poderiam fazer para atravessar da melhor maneira
possível aquela situação, choraram, baixinho é claro, não poderiam despertar a
cólera do pai que neste momento se concentrava no porco e no sobrinho, caso o
último resolvesse mudar de idéia.
Chico
pensava em como seria bom se não fosse sobrinho de Manoel. Mas era, e agora o
destino do porco estava em suas mãos.
Manoel
abriu o cercado. O porco recuou. Chico disfarçou o medo, deu cinco passos em
direção ao porco e olhou para trás. Manoel já estava a alguns metros distante,
observava tudo da varanda, da mesma de onde exigiu que Chico desse fim ao
animal.
As
crianças optaram por entrar em casa, dessa forma evitariam ver o sofrimento de
seu amigo Rosado e assim só guardariam dele boas lembranças. Os mais atrevidos
se posicionaram nas janelas entreabertas e ficaram aguardando, ora abrindo, ora
cerrando os olhos, levados pela curiosidade e pelo medo, ambos misericordiosos.
Chico
tinha em suas mãos a faca de Manoel, grande, afiada, com cabo revestido em
couro, talvez de porco, quem sabe? O rapaz estava tão aflito, se sentia tão só
e tão vigiado ao mesmo tempo. O olhar do porco dizia a Chico que nada estava
acontecendo, uma vez que o animal continuava artificiosamente sem perceber a
faca nas mãos de Chico, muito menos o seu propósito, como querendo escapar de
sua fortuna.
O
olhar das crianças, embora clandestino, também se fazia notar, vez ou outra
esbarravam nas grades das janelas, se acomodando para captar o melhor ângulo.
Chico
deu o último suspiro e encurralou o porco no final do cercado sem olhar
diretamente em seus olhos. Levantou a pata dianteira, a esquerda conforme as
instruções. Recolheu a mão direita que segurava a faca, e com um golpe rápido
atingiu o porco. O que se seguiu após o golpe, ninguém jamais poderia prever, a
não ser Sebastião, caso estivesse ali. Um grito, um relincho alto e
desesperado. O barulho das janelas, todas se fechando juntas completavam o
pandemônio. Chico, paralisado, se descuidou e deixou que o porco escorregasse
se livrando de suas pernas.
O
animal sai a galope, foge do cercado em uma corrida frenética e desconcertada.
Manoel põe as mãos no rosto desacreditando no rumo que a situação tomou. O
porco, agora bem ciente do que lhe sucede, após rodear inúmeras vezes o quintal
aos berros e sangrando, perde o senso de direção e vai parar dentro de casa,
expulsando todos para o quintal. Gritos, berros, choro e agonia.
Vó Maria assistia a tudo como se não
confiasse. Viu o porco adentrar sua cozinha esguichando pavor, viu o sangue do
animal tingir o chão. Presenciou Rosado atribulado, esbarrar em suas cadeiras,
dar de frente com seu fogão, escorregar em seu tapete de barbantes, enfim,
percorrer a casa inteira tentando amenizar seu sofrimento. Vó Maria achou que
bastara, fez uso de uma vassoura descabelada e atingiu inúmeras vezes o animal,
já ferido, até colocá-lo de volta para fora, onde Chico permanecia na mesma posição, com a faca na
mão, semi agachado e perplexo.
Mas
e Manoel, onde estaria o valente nordestino em meio a essa confusão toda? Onde
estaria ele, que não tentava por si mesmo agarrar o porco e num ato
desesperado, talvez asfixiá-lo até a morte? Pois não fosse Manoel, o sucedido
não seria assim tão digno de ser contado e recontado. Não fosse ele e o
desfecho que deu nesse surpreendente ocorrido, essa seria apenas mais uma
história, tal quais tantas contadas por aí.
Manoel
enfim chegou. Veio com o olhar torpe, gritando palavrões dirigidos a Chico,
afastando cada móvel e criatura que se pusesse em seu caminho. Correu em
direção ao porco, que agora, ainda tomado em agonia, estava tombado no chão se
arrastando em círculos, utilizando apenas as patas traseiras para qualquer
movimento.
Manoel
parou de frente para o animal, que por sorte não o reconhecera. Enrijeceu o
corpo, de modo que apenas sua cabeça estivesse baixa, sacou sua pistola da
cinta, mirou a cabeça do porco e descarregou.
Um
silêncio se seguiu a ação inesperada de Manoel. O nordestino ficou ali ainda
por alguns segundos, enrijecido, suspirando comprido, suando ora frio, ora
quente, com olhar repulsivo e ao mesmo tempo aliviado. Acabou. A trajetória do
porco tivera um fim.
Manoel
guardou a arma ainda quente em sua cinta, ajeitou as calças até o começo da
cintura, secou a testa com um lenço úmido e sacudiu a cabeça dando uma boa
olhada em volta. Viu as crianças em baixo da mesa, algumas ainda de olhos
fechados, outras com olhos esbugalhados. Viu Chico com a faca na mão e lágrimas
nos olhos, e viu Vó Maria da janela da cozinha, também a sacudir a cabeça em
sinal de reprovação.
Dirigindo-se
ao sobrinho, Manoel soltou um grunhido incompreensível e disse quebrando o
silêncio angustiante: – “Cabra frouxo! Eu disse que era simples!”
Chico
se levantou, secou os olhos e deixou a faca cair. Despediu-se do tio apenas
acenando com a cabeça, colocou as mãos no bolso e caminhou até o portão sem
dizer palavra.
Manoel
então pediu que as crianças limpassem toda a bagunça e a Vó Maria que cuidasse
do preparo da carne.
As
crianças como sempre se mostraram obedientes, evitaram olhar para o corpo de
Rosado estendido no chão, desviaram-se do pai e foram tratar de seus afazeres.
Vó Maria por sua vez, não se mostrou tão preocupada em contentar ao genro,
estava desorientada com tudo que vira, principalmente com a solução para findar
o acontecido.
De
braços cruzados, segurando a ponta do nariz como costumava fazer, foi absoluta: - “Manoel, este porco foi amaldiçoado. Sofreu
demais o pobre, sem contar que tem agora uma bala na cabeça, arrume outra carne
Manoel, porque esse porco eu não asso, não, não, de jeito nenhum! Esse porco eu
não asso!”
Manoel e o Porco de
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